Campari, mulher e pegação: tudo o que você precisa saber sobre elas
Comecei a escrever esse texto há cinco dias do Dia Internacional da Mulher. Não há tempo suficiente de preparo para chegar nesse dia com a mensagem certa. Departamentos inteiros de marketing estão marcados na internet, por meterem os pés pelas mãos em iniciativas totalmente equivocadas. Ainda assim, entendo que se um coach de misoginia pode dominar a discussão na internet por ameaçar uma atriz, talvez eu consiga fazer algo um pouco melhor e posicionar-me contra essa sufocante masculinidade tóxica – e alcançar alguns “colegas”. As expectativas, lamento dizer, aceitar e concordar, estão muito baixas.
Ouvi a vida toda que “mulher é um trem muito difícil. Não dá pra entender!”. Ou “mulher é assim mesmo, cara. Não liga”. Nós, homens, estamos habituados a usar expressões como essas para transmitir solidariedade. É uma versão machista de “essas coisas acontecem”, quando o “compadrio masculino” tenta isentar o cara. Lembro que, uma vez, enquanto tentavam me consolar sobre uma questão, fui eu quem protestei contra o argumento. Não lembro é de quanto desconforto provoquei.
Na distopia terrível em que a mulher sempre habitou, sempre houve esse tipo de “especialista” a elaborar suas frustrações em cosmogonias pobres e violentas, carregadas de ressentimento e ódio. A mim, parece importante exortar esse tipo de especialista e seu secto à seguinte reflexão: a maior parte de nós não entende nada de Física Quântica, Astronomia, Botânica ou mesmo cálculos complexos. Para bem compreender o que observa-se nestas áreas, como em qualquer outra, é fácil entender que um estudo continuado, de especial dedicação, é sempre muito bem-vindo. Um estudante secundarista não lança-se em aventura nos experimentos de um acelerador de partículas, esperando entender o que acontece ali. Não é porque ouviu falar em uma roda de conversa num boteco que o sujeito capacita-se como astronauta ou engenheiro.
Até hoje discute-se o que Platão teria querido dizer sobre Política na remota Grécia Antiga. No entanto, quando o assunto é a mulher, somos especialistas sem nunca ter dedicado qualquer tempo a ouvir, de verdade, o que nos dizem as mulheres nas mais diversas áreas – há muito tempo. E aqui, vou facilitar o exercício: ouçamos as incríveis mulheres da cultura pop atual.
Já faz bem mais de uma década que a cena pop musical é dominada por mulheres. Pensadoras extraordinárias como Rihanna, Adele, Mc Tha e uma feliz infinidade de outras produzem ensaios capazes de nos ilustrar a todos, bastando que conectemos nossos celulares à fartura de serviços de streaming que consumimos. Contudo, insistimos em não ouvi-las. Entendemos que há algo como música de mulher (ou de homem) e compartimentamos o que homens ouvimos e o que não ouvimos. Depois da infância, em que alguns de nós, ainda pouco embebidos de machismo, nos permitimos ouvi-las, nem sempre voltamos à escuta madura dos temas e perspectivas femininos. E, como é óbvio, há muito para aprender.
Em 2009, a Rainha do Pop, Madonna, que já nos tinha chocado a todos com outras propostas, nos deu “What it feels like it for a girl”, em que propõe:
“Moças podem usar jeans
E cortar o cabelo curto (…)
Porque é legal ser um menino.
Mas um menino parecer uma menina é degradante
Porque você acha que ser uma menina é degradante (…)”
No videoclip, Madonna mostra a uma geração anterior o que uma mulher pode ou deve fazer (leia-se subverter e desafiar a ordem patriarcal e chauvinista). É genial. Agora, a gênia que tanto nos deu, aos 64 anos, foi reduzida a opiniões superficiais sobre sua aparência. A mulher que provocou mudanças culturais profundas em todas as décadas em que foi especialmente relevante parece ter sido reduzida a um bibelô estragado. Que o showbiz tenha dessas coisas, da obsessão com a aparência, mas ainda não reprimimos o agressor sexual como reprimimos o envelhecimento de uma mulher.
Mais recentemente, Dua Lipa propôs que “meninos vão agir como meninos, mas meninas serão mulheres”, com todas as proibições e medos que ela apresenta no começo dessa canção. É uma desigualdade cruel que aquele predador “red pill” jamais seria capaz de levar em consideração. Taylor Swift, a jovem gênia que revolucionou o mundo da música digital, propõe, de maneira semelhante, que “você é quem leva uma mulher a ser louca” – até porque, no mesmo álbum, ela precisa insistir pra não ser chamada de “criança” ou “benzinho”.
A nossa relação teleológica de homens para com as mulheres tende a objetificá-las; são prêmios a ser conquistados. O encontro sugere um objetivo: “pegar mulher”. Nas canções dos homens, com alguma frequência, romantizamos o “obcecado” como um homem apaixonado – como em “toda vez que você respirar, eu vou estar observando”, do Sting. A ideia do cavaleiro a salvar a donzela em perigo é tema recorrente, como são o homem arrependido (de ter feito bobagem) e a mulher que não presta (exatamente, porque mandou o cavaleiro embora). Algumas dores são intensas, como chantagem emocional num relacionamento abusivo. Na mulher, há mais maturidade para lidar com os “términos” (e com os relacionamentos).
O mundo feminino no universo pop nunca esteve tão acessível. Nunca houve um momento como o que vivemos para aprender com a perspectiva poderosa e transformadora delas. A mulher não é o outro; é parte de nós, como referência cultural, histórica e afetiva. A mulher somos nós, integrados, igual e respeitosamente cuidados, ouvidos, confortados. É desconsolador que o mesmo universo pop ainda grite tantas vozes violentas e opressoras, que pretendem determinar o que é ou não aceitável numa mulher – encaixotando, com a mesma mão, homens tristes e frustrados.
À mulher, todos os dias do ano.
*** Esta é uma coluna de opinião e não reflete o posicionamento da i7 Network.